quinta-feira, 26 de julho de 2007

SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS

SERES HUMANOS NÃO RENTÁVEIS > >Ensaio sobre a relação entre história da modernização, crise e >darwinismo social neo-liberal > >Robert Kurz > >Nota Prévia: Este texto constitui a versão escrita de uma >apresentação efectuada a 15.11.2005 em Brunnen, Suiça, nas Jornadas >Anuais da INTEGRAS (Schweizer Fachverband für Sozial- und >Heilpädagogik) [Associação Profissional de Pedagogia Médica e >Social]. O texto não desenvolve ideias novas, mas consegue dar, ainda >assim, uma perspectiva sobre as afirmações standard na análise da >crítica do valor e da dissociação, de outro modo só possível de >encontrar espalhada em diversos artigos ou no contexto da >argumentação mais extensa dos livros. Os sub-títulos são de >responsabilidade da redacção da INTEGRAS. As apresentações desta >jornada serão publicadas brevemente em brochura > > > >É incontestável: a divisão da sociedade aprofunda-se e assume >proporções dramáticas; simultaneamente, as instituições que devem >tratar e administrar o social definham e paralisam devido a >restrições financeiras. O problema pode apresentar actualmente >aspectos diferentes em cada país, de acordo com a sua situação >económica no mercado mundial, as tradições nacionais e as relações >estruturais; mas a tendência de fundo é em todo o lado a mesma. Se >uma ordem social agrava permanentemente o catálogo das suas >exigências e exclui cada vez mais seres humanos, tal constitui um >indício de que ela atingiu os limites imanentes na sua constituição >fundamental, como modo de produção e de vida. Trata-se, pois, de uma >crise estrutural das formas que constituem a base da sua reprodução, >cegamente pressupostas por norma. Por isso esta crise, como problema >social total, não pode ser explicada nem vencida por nenhum ponto de >vista duma actividade específica, dum interesse particular ou duma >instituição particular. Torna-se necessária, por assim dizer, a vista >aérea panorâmica da crítica social, para encontrar uma orientação >na "nova intransparência [Unübersichtlichkeit]" (Habermas). > >Em primeiro lugar estamos perante uma grande confusão após a >derrocada do socialismo. O fim do conflito de sistemas e da guerra- >fria foi interpretado como vitória definitiva do capitalismo >ocidental; prometia-se uma nova idade do ouro de prosperidade, >através da abertura a todo o mundo do mercado, num sistema mundial >universal unificado. Entretanto é tão violenta a desilusão, com >sempre novos cortes sociais, crises económicas, guerras civis por >todo o mundo e barbárie crescente, que se tornou necessária uma >explicação diferente. Não são os pontos diferentes, mas sim os pontos >comuns de ambas as sociedades do pós-guerra que são essenciais para >se conseguir entender este desenvolvimento. > >Todas as sociedades modernas são sistemas produtores de mercadorias, >independentemente de o serem numa constituição mais regulada >estatalmente (socialismo de estado, keynesianismo) ou na forma do >mercado mais desenfreado (capitalismo de concorrência neoliberal); e >o seu sistema de referência comum é o mercado mundial. O mercado >universal, porém, não existe por si, mas é a esfera funcional dum fim- >em-si social irracional, que consiste em fazer do valor mais valor >para fazer do dinheiro mais dinheiro (valorização do capital ou >acumulação de capital). Só através deste fim em si que no fundo lhe >está subjacente é que o mercado se tornou universal, enquanto a >produção de mercadorias nas sociedades pré-modernas tinha apenas >carácter marginal e a vida era reproduzida na sua maior parte sob >outras formas. Karl Marx apreendeu esta diferença em duas simples >fórmulas da relação de mercadoria (M) e dinheiro (D). Enquanto >simples forma de nicho nos poros das sociedades agrárias a relação >funcionava segundo a fórmula M-D-M. O dinheiro limitava-se aqui ao >papel de mediação, estando os objectos da necessidade em forma de >mercadoria no princípio e no fim da transacção. Na modernidade >inverte-se a relação, que aqui funciona segundo a fórmula D-M-D'. Os >próprios objectos concretos da necessidade são apenas o "meio" para a >valorização do capital-dinheiro, isto é, para a transformação de >valor (D) em mais valor (D'). Isto significa que a satisfação das >necessidades é rebaixada a um simples subproduto da valorização e >torna-se dependente desta. A produção desliga-se dos laços sociais da >vida, como "economia empresarial" e autonomiza-se como processo >sistémico anónimo face aos seres humanos, que deixam de ter qualquer >controle sobre a reprodução da sua própria vida. > >Trabalho, valor, valorização > >O mecanismo interno desta "economia desvinculada [herausgelösten]" >(Karl Polanyi) reside na exploração de energia humana ("trabalho"). >Nas sociedades pré-modernas a abstracção trabalho era negativamente >conotada, como nome colectivo originariamente para as actividades dos >dependentes (escravos). Apenas na modernidade o trabalho foi >positivado e universalizado. Aqui o trabalho funciona >como "substância" (Marx) do valor e da valorização. O dinheiro não é >senão a representação de um quantum de trabalho. Contudo, a >actividade nesta forma correspondente à autofinalidade sistémica é >também desvinculada dos conteúdos da necessidade e portanto >indiferente face a estes; por isso se trata de "trabalho abstracto" >(Marx). É indiferente se se fabrica bolachas de chocolate ou granadas >de mão, o importante é que a energia humana abstracta como "dispêndio >de nervo, músculo e cérebro" (Marx) possa ser transformada em >dinheiro (mais-valia). À autofinalidade da valorização corresponde a >autofinalidade do "trabalho abstracto"; a infindável acumulação de >valor não é senão a infindável acumulação de trabalho morto >(passado). Do trabalho tem que se fazer sempre de novo trabalho. Sob >estas condições o mercado já não representa nenhuma troca entre >produtores independentes. Ele não passa da esfera da realização da >mais-valia, isto é, da retransformação de "mais trabalho" em "mais >dinheiro". Por isso a "liberdade do mercado" é ilusória; esta >liberdade tem por base a relação coerciva do "trabalho abstracto". >Aqui a coerção já não é pessoal (como por exemplo na relação de >senhor e servo), mas uma coerção sistémica anónima de se vender a si >mesmo como "máquina de dispêndio" de energia humana abstracta (força >de trabalho) na "economia desvinculada". > >Todas as actividades, "atitudes" e comportamentos que são necessários >para a reprodução da vida, mas que não podem ou dificilmente podem >ser incluídos no sistema do "trabalho abstracto" e da economia da >valorização desvinculada foram historicamente dissociados deste e >delegados nas mulheres como "trabalho de amor" sem custos (o chamado >trabalho doméstico, a assistência, o acompanhamento, a dedicação, o >desempenho de funções de amortecimento socio-psíquico etc.). O >sistema da economia desvinculada é, portanto, desde logo, >simultaneamente um sistema de "dissociação sexual [geschlechtlichen >Abspaltung]" (Roswitha Scholz). Daí que a dissociação é uma categoria >da totalidade, tal como a valorização e o "trabalho abstracto"; a >relação social total apresenta-se assim como uma relação social >complexa, intrinsecamente fragmentada. A relação de dissociação não >se limita a uma determinada esfera (por exemplo, a família), mas >apresenta-se transversal a todas as áreas da reprodução, incluindo o >próprio "trabalho abstracto". A "economia da valorização" é definida >como "estruturalmente masculina". Entretanto, no processo da >modernização, também as mulheres foram cada vez mais usadas como >reservatório de força de trabalho. Não, porém, no sentido de uma >libertação, mas como dupla subordinação, ao "trabalho abstracto" e >aos momentos dissociados em boa medida considerados de menor valor e >secundários ("dupla carga"). Até hoje as mulheres têm sido em regra >mais mal pagas na economia da valorização, continuam a ser pouco >representadas nas funções de direcção e simultaneamente todo >o "trabalho de amor" continua a ser considerado da sua competência em >todos os domínios. > >O moderno patriarcado produtor de mercadorias e as suas contradições > >Este breve esboço da conexão sistémica que está na base de todas as >variantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias (pois esta é >a designação mais precisa da sociedade da valorização, incluindo a >relação de dissociação) revela só por si um monstruoso desaforo. No >entanto este foi interiorizado e transformado em normalidade >inquestionável no decurso dum longo processo histórico. Os seres >humanos têm que ser "rentáveis" no sentido do fim em si do sistema; >só assim a existência está garantida. Estas exigências foram impostas >nos primórdios da modernidade desde o século XVI e no capitalismo >primordial dos séculos XVIII e XIX com coacção sangrenta e contra uma >longa resistência dos movimentos sociais. Na primeira metade do >século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das >crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de >mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e >dissolver-se no caos e na barbárie – com manifestação extrema no >sistema de aniquilação de seres humanos especificamente alemão do >anti-semitismo exterminador ou nacional-socialismo. > >Mas depois da segunda guerra mundial houve o "curto Verão" do milagre >económico. O desenvolvimento das forças produtivas forçado pela >concorrência libertou potencialidades nunca sonhadas, que haveriam de >tornar possível uma "civilização do capitalismo". Apesar da >racionalização a necessidade de "trabalho abstracto" cresceu como >nunca antes, porque os bens industriais de luxo, antes limitados a >uma estreita camada (automóvel, electrónica de uso doméstico e de >entretenimento etc.), entraram no consumo de massas e os mercados >alargaram-se bruscamente. Só então é que as mulheres foram integradas >no trabalho profissional da economia da valorização em grande escala >social. O consumo de massas, incluindo o turismo de massas etc., >transformou-se numa espécie de quase religião. O fim em si irracional >do sistema parecia reconciliar-se com as necessidades, ainda que numa >forma adaptada, sob muitos aspectos destrutiva (transporte >individual, destruição do ambiente etc.). Outro subproduto do boom do >pós-guerra foi a imparável construção do estado social e de infra- >estruturas públicas, com um elevado standard de educação, trabalho >social e cuidados médicos para todos. É verdade que a realidade >desta "época dourada" da sociedade de valorização do valor e >dissociação, designada "fordismo", do nome do fabricante americano de >automóveis Henry Ford, se limitava aos países do núcleo industrial >ocidental, mas luzia ainda assim uma perspectiva >de "desenvolvimento", também para o resto do mundo. > >Ainda que o desenvolvimento das forças produtivas sob a pressão da >concorrência do mercado universal seguisse, depois como antes, o >ditame de transformar trabalho em mais trabalho, e ainda que o brilho >do "milagre económico" tenha começado a esmaecer já desde os anos >setenta, o potencial da produtividade foi desde então celebrado >como "máquina de civilização". Recaíram no passado as muitas gerações >queimadas sob péssimas condições no "trabalho abstracto". Até a >libertação da mulher das suas atribuições tradicionais parecia ser >conseguida em grande medida, apesar da "dupla carga", uma vez que >elas podiam cada vez mais "ganhar o seu dinheiro", as tarefas >domésticas eram consideradas susceptíveis de robotização com a >electrónica e muitos dos domínios dissociados haveriam de ser >resolvidos em sectores comerciais ou em instituições públicas >financiadas pelo Estado. > >Porém, desde os anos oitenta que a terceira revolução industrial da >microelectrónica transtornou gravemente os planos de todas estas >esperanças positivas. Desde logo era o mesmo desenvolvimento da >produtividade, que obteve tão grandes sucessos na história do >fordismo no pós-guerra, que constituía simultaneamente a condição da >crise. Pois quanto maior a produtividade, tanto menor a "substância >do trabalho" por mercadoria, e portanto tanto menor o valor a que se >chega no processo da valorização. A contradição está em que cada >empresa individual não "realiza" imediatamente no mercado a mais- >valia que criou dentro das suas quatro paredes, realiza sim uma parte >da mais-valia social total. Esta parte é definida através da >concorrência, onde uma empresa obtém tanto mais êxito quanto mais >barata conseguir fazer a sua oferta. Ora o meio para isso é o aumento >da produtividade. Desde modo, contudo, entram em contradição o meio e >o fim sociais: uma empresa consegue apropriar-se duma parte tanto >maior da mais-valia social total quanto mais contribuir para, através >da elevação da força produtiva, esvaziar e socavar a produção de >valor enquanto tal. Esta contradição chegou a manifestações >explosivas sucessivas nas crises históricas. Contudo ela pôde ser >sempre suplantada porque a queda do valor e com ele da mais-valia por >mercadoria, com a redução da substância de trabalho, era mais que >compensada pela simultânea expansão da quantidade de trabalho total, >com o alargamento dos mercados; com sucesso na era fordista do pós- >guerra, como se viu. > >A revolução microelectrónica e as suas consequências > >Na revolução microelectrónica, contudo, esta compensação já não >funciona. O potencial de racionalização é agora tão grande que >continuamente se torna supérfluo mais trabalho do que aquele que pode >ser absorvido adicionalmente na valorização, através do aumento da >produção de mercadorias. Apesar do aumento da quantidade de >mercadorias, diminui rapidamente a substância de trabalho >social "válida" no standard de produtividade da microelectrónica e >consequentemente a crise assume carácter estrutural. Nas regiões >periféricas do mercado mundial, na zona do socialismo de Estado do >Leste e da "desenvolvimento atrasado" do Sul, tal situação já >conduziu à derrocada social, precisamente porque a microelectrónica >não pôde ser aplicada com êxito por falta de força de capital e por >isso a respectiva produção caiu abaixo do standard de produtividade >mundial (tornando-se, portanto, "não rentável" e deixando de ter >capacidade de concorrência). Esta situação foi interpretada como >falhanço próprio das variantes do socialismo de Estado, em vez de >como parte de uma crise mundial da terceira revolução industrial, >apesar de o mesmo problema há muito se ter feito notar também no >Ocidente, como desemprego estrutural de massas; e precisamente por >causa da forçosa aplicação da microelectrónica. > >Desde então a crise atingiu profundamente os centros ocidentais. Cada >vez mais seres humanos se tornam "não rentáveis" e são excluídos; por >todo o lado partes inteiras dos países ficam abandonadas, enquanto a >economia empresarial se globaliza num terreno de rentabilidade que se >reduz. Na falta de produção de mais-valia real, o capital dinheiro >refugia-se simultaneamente numa economia de bolhas financeiras. Já >não é a venda de mercadorias que é decisiva, mas são os ganhos >diferenciais na circulação de títulos financeiros que suportam uma >valorização tornada fictícia. Empresas e partes de empresas são >tratadas como pedaços de carne para trinchar (fusionite e batalhas >por aquisições, sem investimento real). Na interpretação popular, o >complexo causal é na maior parte dos casos posto de pernas para o ar, >responsabilizando erradamente pela miséria, em tom anti-semita, uma >espécie de "praga de gafanhotos" de especuladores, como se o problema >não residisse nas próprias contradições do sistema produtor de >mercadorias. A expansão dos mercados, no contexto do poder de compra >em queda por falta de capacidade de utilização com êxito de "trabalho >abstracto" rentável, transforma-se em capacidades excedentárias >globais, que são sucessivamente desactivadas. É absurdo: pelo facto >de a produtividade se ter tornado "demasiado elevada" e de poderem >ser fabricados muitos bens com pouco trabalho, cada vez mais seres >humanos são rebaixados a um nível de pobreza ainda há pouco tempo >inimaginável. A divisão da sociedade aprofunda-se cada vez mais; até >a classe média está a ser entretanto apanhada pelo turbilhão da crise. > >O Estado social está a ser desmontado > >Não se trata, porém, apenas da desmontagem das capacidades de >produção não rentáveis mas, na senda desta tendência negativa, também >o Estado se transforma cada vez mais numa simples administração do >estado de emergência, porque já não consegue regular a economia >empresarial globalizada e porque lhe estão a faltar as receitas. Há >um consenso neoliberal suprapartidário em quase todos os países, que >executa e legitima ideologicamente a crise do sistema, apenas e só >contra os seres humanos. Agora se vê que as "aquisições >civilizatórias" do período do pós-guerra não são auto-sustentáveis, >mas tinham que ser alimentadas com uma valorização conseguida >do "trabalho abstracto". Na mesma medida em que este regride, também >a civilização social é obrigada a recuar. É precisamente sob as >condições do desemprego de massas e da nova pobreza que o Estado >social é desmontado e abandona os seus filhos. Estruturas inteiras >definham e são reduzidas a poucas "regiões metropolitanas". O Estado >desfaz-se dos serviços públicos, como um nobre arruinado se desfaz >das pratas da casa. A privatização significa em regra redução à >capacidade de pagamento privada e portanto o fim das estruturas >universais. Os caminhos-de-ferro deixam linhas ao abandono, os >correios fecham estações. No sistema de ensino expande-se o ensino >para duas classes (conceito de elite), nos serviços de saúde a >medicina de segunda classe. Agora diz-se de novo e sem qualquer >cerimónia: tens de morrer mais cedo porque és pobre. Na maior parte >dos casos são as camadas inferiores da pirâmide social as mais >duramente atingidas pelas restrições financeiras nos serviços >públicos, como é o caso das instituições de trabalho social, de >prestação de cuidados aos deficientes, aos sem abrigo e aos idosos, >porque dispõem dos lobbies mais fracos. > >Após os despedimentos em massa nos sectores comerciais e industriais, >a crise do Estado social e dos serviços públicos resultante da crise >da valorização conduz, também nos sectores antes geridos pelo Estado, >a uma "disponibilização" similar de empregados, que vão engrossar o >exército dos caídos. Um número cada vez maior de seres humanos vê-se >obrigado à prestação de serviços baratos e à venda ambulante, ao >empresariado de miséria etc., na esfera da circulação. As mulheres >são particularmente afectadas. O discurso sobre o fim do patriarcado >é desmentido. Por um lado o Estado e a economia delegam novamente as >tarefas financeiramente exauridas do tratar e do cuidar no >amplo "trabalho de amor" voluntário feminino. Por outro lado as >mulheres também são desproporcionadamente afectadas pelo >desmantelamento dos serviços públicos. Sendo certo que as mulheres >nos países ocidentais igualaram os homens no que respeita a >habilitações académicas, o seu emprego, contudo, concentrou-se em >grande medida nos serviços públicos, precisamente os que agora são >reduzidos. Elas sofrem massivamente a desvalorização das suas >qualificações. Em parte os seus lugares são ocupados por mães >solteiras, tratadas com particular dureza pela administração social, >que são obrigadas a trabalhar sem qualificações ou com qualificações >diferentes. Estas, por sua vez, têm que deixar os filhos em centros >de acolhimento, em que na maior parte dos casos trabalham migrantes >leste-europeias, ainda mais mal pagas. Também a pobreza pública é em >primeira linha uma pobreza feminina. A crise da economia da >valorização e do "trabalho abstracto" é simultaneamente uma crise da >identidade masculina; no quotidiano da crise cresce dramaticamente a >violência (familiar) masculina contra as mulheres, enquanto se fecham >centros de acolhimento e casas de apoio às mulheres. > >A hierarquia dos não rentáveis > >Quais as consequências do agravamento das condições da crise? Na >generalidade, pode dizer-se que mais cedo ou mais tarde todos somos >não rentáveis. Isso é verdade, mas há nesta abstracção uma cilada >argumentativa, pois assim não são consideradas as diferenciações >internas. Quanto mais a crise se agrava, mais se agrava também a >concorrência universal, que é instrumentalizada pela administração da >crise para jogar uns contra os outros os diversos grupos de caídos. >Há divisão social não apenas entre os vencedores em número cada vez >menor e os perdedores em número cada vez maior, mas também entre os >próprios perdedores. Ainda ocupados e desempregados, mulheres e >homens, jovens e velhos, herdeiros em perspectiva e filhos de >indigentes, saudáveis e doentes, não incapacitados e incapacitados, >nacionais e estrangeiros defrontam-se mutuamente ao nível da pobreza; >e trata-se de ver "quem é que ainda se safa". Temos que nos >confrontar com uma hierarquia de não rentabilidade atravessada por >precárias lutas pela partilha. Mesmo no fundo dessa hierarquia >encontram-se os absolutamente abandonados, que já nem maus e >criminosos podem ser: doentes mentais, incapacitados psíquicos e >físicos, dependentes de assistência e doentes terminais. São em série >os repetidos escândalos em lares de idosos e de internamento, >causados também pela desqualificação do pessoal, em número reduzido e >sob a pressão dos custos e do serviço. > >Mesmo no centro das democracias ocorrem uma descivilização e uma >desumanização estruturais, que até agora se julgavam bem longe, na >periferia do mercado mundial, donde de qualquer modo já foram >copiadas em grande parte. Não se trata de nenhum pessimismo, mas de >uma realidade social em expansão. Sob tais condições, as clássicas >reacções de crise e ideologias de crise do sexismo, do racismo e do >anti-semitismo encontram-se na ofensiva por todo o mundo, >transversais a todas as camadas sociais. Os demónios do século XIX e >princípio do século XX regressam em forma modificada; não em último >lugar na forma de uma mentalidade social-darwinista, que tem as suas >raízes no liberalismo clássico e que por isso pode manter hoje a >bênção neoliberal na forma completamente desenfreada. "Survival of >the fittest" é a palavra de ordem repetida de novo e já nada >discretamente. A lógica de base subjacente reza que não é o >patriarcado produtor de mercadorias declarado lei natural que chega >ao fim, mas sim o interesse vital e o direito à vida dos seres >humanos não rentáveis. Regressa com novas honras a teoria >da "superpopulação" do liberal hardcore Thomas Malthus do princípio >do século XIX. > >Não foram apenas os nazis que inventaram a divisa assassina da "vida >que não merece ser vivida" e a levaram às últimas consequências, pelo >contrário, ela ganhou fôlego a partir de uma larga corrente de >pensamento social-darwinista, na qual, até à primeira guerra mundial >e mesmo depois, se incluem, além dos liberais, grande parte da >esquerda e da social-democracia (o que hoje é completamente >ignorado). É por isso que o consenso neoliberal suprapartidário pode >hoje prosseguir novamente o velho consenso social-darwinista até ao >meio do centro social, e mesmo no interior da esquerda parlamentar: >uma base legitimadora tácita para as tendências de descivilização da >administração da crise e das forças que com elas fazem a co- >administração. Elementos deste pensamento encontram-se não apenas >entre os bandos da direita radical, que na Alemanha já insultam os >incapacitados como "devoradores de recursos" e os derrubam das >cadeiras de rodas, mas também no aparelho da administração social e >entre os quadros da classe política democrática. Entre os seus >antepassados inclui-se, por exemplo, o social-democrata austríaco >Rudolf Goldscheid, que antes da primeira guerra mundial inventou o >conceito de "economia de seres humanos" e recomendou ao Estado >uma "criação rentável de seres humanos", pelo que não deveria ser >alimentado o material humano incapacitado. Precisamente na época de >uma crise do "trabalho abstracto" e das sobrecapacidades da >hiperprodução é que é hoje mobilizada de novo a ilusão deste >revigoramento físico. A aparente suplantação do darwinismo social >pertence à filosofia do bom tempo do passado milagre económico, que >agora se enterra silenciosamente. > >Resistência e crítica social > >Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande >tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma >limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um >facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em >cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes >para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um >amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a >concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que >com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições >sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação >sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é >necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o >pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em >todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a >perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do >patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do >antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise >podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta >abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte >mental a uma nova crítica social radical – em vez de se deixar >consumir completamente pelo dia a dia da crise.

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