sábado, 13 de março de 2010

Fernand Braudel no Brasil

Brasil à francesa
Os anos brasileiros, entre as décadas de 1930 e 1940, marcaram a vida e a obra do historiador francês Fernand Braudel
Joselia Aguiar
Edição Impressa 168 - Fevereiro 2010 © Revista Pesquisa FAPESP - Todos os direitos reservados.
© divulgação Edusp
O jovem Braudel em foto tirada quando de sua estada no Brasil

“Para quem se via acuado entre a historiografia convencional, a vulgata marxista e o sociologismo, Braudel foi uma autêntica libertação. Ali estava finalmente um historiador que nem tinha o ranço de uma nem o reducionismo da outra nem o doutrinarismo do terceiro; e que, munido dos instrumentos da erudição mais recente, era capaz, como os grandes historiadores do século XIX, de dar corpo, alma e vida a largas fatias do passado”, escreveu o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello. O elogio dá uma noção do encantamento que gerações experimentaram há cinco décadas com a leitura de O Mediterrâneo, obra monumental de Fernand Braudel (1902-1985) e do peso da influência do historiador francês. O que poucos sabem é que o seu pensamento, incluindo-se a criação dessa sua obra máxima, foi gestado durante sua estada no Brasil durante os anos 1930 e 1940. Essa temporada tropical de Braudel é o tema do estudo do historiador Luis Corrêa Lima, paulista, radicado no Rio de Janeiro, da PUC-RJ, autor de Fernand Braudel e o Brasil – Vivência e brasilianismo (1935-1945), recém-lançado pela Edusp, resultado de sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília (UnB), em que analisa justamente o impacto que o país teve sobre o intelectual francês e vice-versa.

“Para ele, foi uma mudança de perspectiva. A partir do contato com a sociedade brasileira e sua história, Braudel conseguiu imaginar a Europa do Antigo Regime”, explica o pesquisador. “Além disso, ele foi muito importante para o Brasil e para a USP, pois ajudou a formar toda a segunda geração de professores da universidade.” País adotivo e o jovem se uniram para criar O Mediterrâneo e as raízes de uma nova forma de fazer história. “Se os novos leitores não perceberem com nitidez a novidade que a obra representou em sua época, isso talvez se deva, de certo modo, ao fato de o próprio Braudel ter influenciado sucessivas gerações que aderiram à Escola dos Annales, da qual fez parte. Uma escola que renovou a historiografia, aproximando-a das ciências sociais, e fez surgir novos temas e horizontes. Tratava-se, naquele tempo, de um tipo de narrativa histórica incomum.”

Ao iniciar o doutorado, o período escolhido por Corrêa Lima foi justamente dos anos brasileiros de Braudel, decisivos para toda sua obra. Foi nessa época, por exemplo, que elaborou parte do mesmo O Mediterrâneo. A tese de Corrêa Lima investiga desde a chegada das missões francesas que contribuíram, nos anos 1930, para a fundação da USP até o período imediatamente posterior à volta para a França, em que esteve por cinco anos numa prisão nazista. “A França era considerada a líder da latinidade e a sua cultura, o caminho seguro da modernidade e do progresso verdadeiro. Oferecia simultaneamente tecnologia e humanismo, laicidade e religião. Por isso acreditava-se que a França poderia nos salvar da ‘barbárie’ de uma civilização meramente industrial. Os conflitos ideológicos naquela época eram bastante fortes, e a presença francesa correspondia ao projeto da elite paulista de educar a juventude nos ideais democráticos, longe do fascismo”, explica Corrêa Lima.

Entre as dificuldades da empreitada, houve a própria vastidão da obra de Braudel a ser lida: como exemplo, considere-se que seus dois livros principais somam cinco volumes e mais de 3 mil páginas. A segunda, conforme Corrêa Lima, foi quanto à questão específica que queria pesquisar: Braudel e o Brasil. “Será que haveria material suficiente para se escrever uma tese? Ou o assunto se esgotaria em um capítulo ou pouco mais?”, perguntava-se. Tal dúvida lhe provocou angústia por muito tempo. A terceira dificuldade foi o acesso aos arquivos de Braudel na França. “Foi uma longa espera até que as portas se abrissem”, conta. Entre as felicidades, houve a de encontrar documentos inéditos, conservados pela viúva do historiador, então com 87 anos, em seu apartamento em Paris. Como resultado, a obra de Corrêa Lima se concentra particularmente em anos que são pouco abordados nas duas maiores biografias do autor, escritas por Pierre Daix, na França, e Giuliana Gemelli, na Itália. Discreto, pesquisador incansável, com fama de excelente professor, Fernand Braudel iniciou sua trajetória como historiador no final dos anos 1920. Nas duas décadas seguintes viveria fora da França. De início, parte para a Argélia, onde o mar lhe provoca a primeira grande inspiração. O acaso o traz ao Brasil: o suicídio de um professor titular que já havia sido nomeado para o cargo. Traz tanto material de pesquisa que, ao se instalar em São Paulo, precisa alugar um outro quarto de hotel. Dizia Braudel que “se tornou inteligente” quando conheceu o Brasil. Para entender tal afirmação é preciso, antes, conhecer aquilo que caracteriza sua obra: trata-se, como destaca Corrêa Lima, da busca da longa duração, ou seja, das permanências e das realidades duradouras nos processos históricos, tanto nas relações do ser humano com o meio quanto nas formas de vida coletiva e nas civilizações. No Brasil ele encontrou um país novo, de dimensões continentais e natureza tropical, uma sociedade em formação contrastando com o Velho Continente, que, no entanto, o fazia imaginar o passado distante da Europa. “Foi no Brasil que ele ‘vestiu a camisa’ da renovação historiográfica preconizada pelos Annales, com um conjunto de intuições que configuraram o seu Mediterrâneo e fizeram dele um grande historiador, ao mesmo tempo original e herdeiro de Lucien Febvre”, argumenta Corrêa Lima.

Coroas - Quando aqui esteve, entre 1935 e 1937, Braudel elaborava sua tese de doutorado sobre o Mediterrâneo no tempo de Filipe II. A obra o ocupou por aproximadamente 20 anos. Como exigência da universidade francesa, era preciso também preparar uma tese secundária, na qual o material pesquisado na pesquisa principal poderia ser reutilizado. Escolheu, então, estudar o Brasil do século XVI, que chegou a fazer parte do reino de Filipe II quando da união das coroas ibéricas.

Na historiografia de Braudel, como explica Corrêa Lima, certas realidades coletivas ou inanimadas atuam de modo coerente como se fossem um sujeito: tornam-se “personagens”. Isso se dá, por exemplo, com o mar Mediterrâneo, que se transforma em personagem em sua história da Europa, e também com a imensidão do Brasil, seus fatores geográficos, imprescindíveis para compreen-der sua história. “Braudel escolheu uma perspectiva bem definida para focalizar o Brasil: uma Europa americana, ou seja, uma civilização europeia na América. E, de modo especial, a única Europa tropical e subtropical em todo o mundo com certa envergadura”, afirma o historiador brasileiro.

Tal perspectiva fez Braudel lançar outro olhar sobre o passado brasileiro e, desse modo, captar as interações do país com o oceano. Braudel, porém, cedeu em parte a um etnocentrismo inaceitável, diz Corrêa Lima. “De qualquer maneira, ele teve a humildade e a grandeza de reconhecer que a história brasileira, como toda a história, é vida e não se deixa aprisionar em uma fórmula”, acrescenta.

Fernand Braudel em 1980: no Brasil conviveu com intelectuais, formou historiadores e até hoje fomenta pesquisas e ideias

Depois da Segunda Guerra Mundial, ao finalizar sua tese, Fernand Braudel foi autorizado a substituir a tese secundária por dois artigos já publicados sobre os espanhóis na África do Norte. E foi assim que o ensaio sobre o Brasil do século XVI permaneceu inacabado. Pouco a pouco, seus interesses de pesquisa se voltaram para o conjunto da América Latina, e mais tarde para a história mundial da vida material e do capitalismo. Desse modo, ele nunca mais retomou o ensaio. Braudel pensava que, para terminá-lo, precisaria consultar os arquivos de Portugal, que na época não estavam organizados.

Em seu período brasileiro, Braudel conviveu com intelectuais, formou historiadores e até hoje fomenta novas leituras e pesquisas. Com três grandes amigos manteve a correspondência: João Cruz Costa e Eurípedes Simões de Paula, professores da USP, e o jornalista Júlio de Mesquita Filho. Como discípulas, destacam-se Alice Canabrava, Cecília Westphalen e Maria Luíza Marcílio. Durante o regime militar, empenhou--se em libertar da prisão seus amigos e conhecidos. Braudel usou seu prestígio internacional como intelectual francês e escreveu cartas aos presidentes militares brasileiros. Assim, como conta Corrêa Lima, ele conseguiu tirar da cadeia Caio Prado Jr., Milton Santos, João Cruz Costa e Yedda Linhares. Aos alunos, futuros professores, recomendava simplicidade, que resulta de clareza.

De volta à França, Braudel foi um dos responsáveis pela divulgação da obra de Gilberto Freyre. Contribuiu com pesquisadores como a historiadora greco-baiana Katia de Queiros Mattoso, que assumiria pela primeira vez a cátedra de história do Brasil da Sorbonne, e o etnofotógrafo Pierre Verger, que dedicou ao historiador a sua tese Fluxo e refluxo e teve nele seu grande incentivador na volta à academia –Verger havia abandonado o Liceu ainda na juventude. Com seus pares franceses, Braudel formou uma geração de grandes historiadores: Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Marc Ferro e Georges Dubys. Até os anos 1950, foi responsável por cursos e conferências sobre a América Latina. Quando a USP completou 50 anos, em 1984, teve o convite para vir para participar das comemorações. Como seus principais amigos brasileiros já haviam falecido, disse que seria um desgosto muito grande vir ao Brasil e não poder reencontrá-los.

Nos últimos anos, têm-se multiplicado estudos sobre intelectuais franceses que viveram no Brasil no mesmo período. Estudam-se não somente sua influência no Brasil, como também a influência do Brasil em suas obras. Autores como Lévi-Strauss, Roger Bastide e Pierre Verger têm sido objeto de pesquisa acadêmica, de reedições e, muitas vezes, de primeiras edições. “Quanto a Braudel, creio que a tendência é a de crescimento de estudos críticos sobre o autor, na medida em que os campos da história da historiografia e da teoria da história estão se consolidando no Brasil, campos esses que não eram nada fortes nos anos 1990, quando fiz minha graduação. Vale dizer: há uma retomada mais reflexiva, um pouco diferente da antiga fonte de inspiração para novos ‘métodos’ e ‘abordagens’”, explica Henrique Estrada Rodrigues, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, autor de artigo recente sobre o diálogo entre Braudel e Lévi-Strauss.

Autor de uma tese de doutorado sobre Sérgio Buarque de Holanda, Estrada Rodrigues diz que a visão que se tem, hoje, da influência francesa no Brasil tem mudado. “Cada vez mais existem outras importantes referências intelectuais, como a alemã ou a inglesa, que relativizam um pouco a importância francesa, sem, claro, desmerecê-la. Isso se deve também a uma especialização cada vez mais acentuada dos programas de pós- -graduação, que começam a desencavar coisas muito específicas. Por exemplo: a associação entre Sérgio Buarque e a nova história francesa, muito difundida nos anos 1990, começa a conviver com estudos que apontam outras fontes de inspiração bastante diferentes ou mesmo antípodas, como a sociologia alemã, as leituras italianas do historiador ou as referências vindas da história literária”, exemplifica.

Diversidade - Corrêa Lima diz que, ante a abrangência da obra de Braudel – o mundo mediterrânico, a cultura material, os primeiros séculos do capitalismo, a França –, há muito ainda a ser estudado. E hoje, em que se interessa por outros temas como história da Igreja e diversidade sexual, a contribuição de Braudel continua bastante valiosa. “Ele ensina a identificar permanências e mudanças na vida coletiva e nas civilizações e a buscar um ‘concubinato’ entre diversos saberes. A perspectiva histórica é muito útil para enfrentar posturas intransigentes e para enxergar o novo que se avizinha”, afirma.

Em uma resenha sobre o livro de Corrêa Lima, publicada na revista Carta Capital, o historiador Elias Thomé Saliba, professor da USP, elogiou as histórias saborosas reunidas, a pesquisa meticulosa e a felicidade em documentar como o “distanciamento” experimentado aqui no Brasil se tornou um rito de passagem para a formação de Braudel. “Distanciamento” que resultaria do contato com outra realidade, diferente da sua. Absorvido pela pesquisa, localizada em outra época, Corrêa Lima afirma que também experimentou algo parecido. Certo dia, após passar várias horas conversando com a viúva de Braudel, teve um estranhamento ao sair à rua, num dia normal de primavera, com jovens, crianças e idosos circulando pelas calçadas. “Nada havia de especial. Entretanto tive a sensação de estar vindo de outro planeta, de um mundo que não tinha nada a ver com o que os meus olhos viam. Nunca havia tido esta sensação antes. O que me aconteceu foi estar tão absorvido em um passado distante no tempo e no espaço que o presente me causou um enorme estranhamento. Era como se eu retornasse de um arrebatamento”, recorda. “É claro que tudo isso é recriação do historiador a partir dos vestígios de que dispõe. Mas pode acreditar: a história tem uma força e um poder envolvente de nos transportar para mundos distantes, ainda que apenas através da imaginação.”

domingo, 7 de março de 2010

Portugal: uma década de crise econômica

A crise econômica internacional que se iniciou em finais de 2007, pela explosão da bolha do subprime, agudizou de forma exponencial a crise endêmica da economia portuguesa durante a primeira década do terceiro milênio. O advento do novo milênio não cumpriu para os trabalhadores portugueses a promessa de um novo mundo antes tem sido um cada vez mais pesado fardo de suportar. O colapso das bolsas mundiais a partir de Setembro de 2008 e de enormes sociedades financeiras colocou o mundo e Portugal na maior crise desde 1929. No meio de uma enorme imprevisibilidade, a burguesia obrigou os seus países a ejetarem bilhões de euros nos mercados e instituições financeiras, seguindo a fórmula dos anos 30, tendo conseguido estancar, a partir de meados de 2009, as perdas destes, no entanto manteve-se, embora menos rápida, a continua queima de capital. Na Europa, os economistas capitalistas começavam a anunciar a retoma a partir do final de 2009, sustentando a sua avaliação na recuperação nos últimos dois trimestres do PIB em vários países, na subida gradual dos mercados bolsistas desde Março e de pequenos sinais de evolução positiva nos mercados automobilísticos e imobiliários, confundindo propaganda e desejo com a realidade. Aquela injeção brutal de capital não foi seguida por uma queima do capital fictício, aliás, serviu para evitá-la, sustentando a especulação, e, além do mais, alguém teria e terá que pagar a factura. A primeira surge no início de 2010, com o anúncio dos vários déficits orçamentais e dívidas públicas em que se põem a nu os enormes buracos em países como Grécia, Itália, Portugal, Espanha, Irlanda, Reino Unido, estando em primeiro lugar de perigo os gregos, colocando em alerta geral a União Europeia (UE), especialmente a burguesia financeira alemã e francesa que são quem mais sustentam a dívida grega. Anuncia-se o caminho semelhante que Portugal e Espanha estarão a seguir, e começam a ganhar força os argumentos da possibilidade de desmembramento da zona Euro. Não há dentro das 15 maiores economias europeias quem cumpra os critérios do pacto de estabilidade europeu. Uma economia sem oxigênio Em 2010 termina uma década de crise e estagnação da economia portuguesa, usando os índices tradicionais dos capitalistas vejamos um pouco esta realidade: na década de 80 (1981-1990) o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) português foi de 3,8% com picos de 7,6% e 7,9%, respectivamente em 1987 e 1990, e um ano de recessão em 1984, numa evolução do PIB de -1%; na década de 90, encontramos já uma descida do crescimento médio para 3% com picos de 4,2% e 4,9%, em 1997 e 1998, e também um ano de recessão em 1993, numa evolução negativa de -0,7%; na década que agora termina, constatamos um crescimento médio de 0,5%, com pequenos picos de 2% e 1,9%, em 2001 e 2007, mas desta vez com dois anos de recessão em 2003 e 2009 com decréscimos respectivos de -0,8% e -2,7% a -3%, dependendo das diferentes projeções do Banco de Portugal ou do FMI, assinalando ainda que o crescimento em 2008 fosse de 0%. Qualquer leigo, e a olho nu, conseguirá entender a linha contínua de declínio do crescimento da economia portuguesa nos últimos trinta anos e, mais ainda, a queda que o crescimento deu nesta última década. Mas, porque os economistas do sistema não aceitam dados simples, é preciso esmiuçar mais números, vejamos então os, de 2009, da Formação Bruta de Capital Fixo em Portugal (FBCF), nome complexo, que mede em quanto os capitalistas aumentaram os seus bens de capital, ou seja, aqueles bens que servem para produzir outros bens. Se em 2008, já houve uma redução de 3,5% nestes índices, em 2009, a FBCF retraiu-se -13,8%, ou seja, os burgueses investem cada vez menos em bens de capital, o que indica sua falta de confiança na dinâmica da economia do país. Novo alarme geral na UE deu-se com a apresentação das contas orçamentais, onde o déficit público português alcançou os 9,3%, em 2009, surpreendendo inclusive o governador do Banco de Portugal que tinham previsto um déficit à volta de 7,9% e outros “observatórios” e “grupos de estudo” apontavam em Setembro para um intervalo entre 6,5% e 7,5%. A um mês do fim do ano, o Governo anunciava um déficit de 8,3%, quando tinha preparado o orçamento com uma previsão de 5,9%. Todas estas previsões errôneas demonstram que a burguesia portuguesa não conseguiu perceber a dimensão da redução na arrecadação de impostos e taxas provocada pela diminuição da atividade econômica e, sobretudo, medir o impacto da injeção de capital na banca, especialmente os 4,5 mil milhões de euros gastos para tapar os buracos nos bancos BPN, BPP, BCP e Finantia. Na última década exigiram-se sacrifícios enormes aos trabalhadores para manter o déficit abaixo dos 3% requeridos pela UE, mas quando se tratou de se salvarem a si mesmos não houve limite que os afrontasse ou detivesse. Outro dado e, nova constatação de que a catástrofe grega não fica assim tão longe, de 2005 a 2010, a dívida pública aumentou 56,1 mil milhões de euros, passando de 90,7 mil milhões para 146,8 mil milhões de euros. E se, em 2004, significava 60% do PIB, em 2009 representa 79,4% e em 2010 vai aproximar-se dos 90%. Se a estes valores da dívida direta juntarmos a dívida indireta das empresas públicas deficitárias, dos municípios e regiões autônomas, que o Estado terá que pagar, então teremos um valor global consolidado de mais de 100% do PIB. Esta dívida gerará uma nova borbulha financeira e acrescentará mais incerteza e contradições que exigirão medidas dacronianas contra os trabalhadores. A burguesia portuguesa assenta a sua acumulação de capital, na última década, essencialmente à custa de rendas diretas do Estado, de apropriação através de privatização de grandes empresas, do turismo, da indústria florestal e do jogo normal do sector financeiro de usura e especulação. Alguns exemplos desta acumulação são a adjudicação de centenas de quilômetros de autoestradas e pontes e respectiva cobrança de pedágios, a gestão de hospitalar privada, a venda da petroleira portuguesa Galp a Américo Amorim que, assim e num ano, se tornou o homem mais rico do país, a apropriação das infraestruturas públicas de comunicação, informação e novas tecnologias e a mundial aposta no sector imobiliário. Talvez o único setor onde haja uma tentativa de mudança do modelo de acumulação, baseado na renda, petróleo e especulação, foi o setor das chamadas energias renováveis que cresceu 33% em 2008, mas que ainda é mínimo no cômputo geral do volume de negócios nacional. Nos finais de 2008 e inícios de 2009 a Caixa Geral de Depósitos, banco público português, emprestou cerca de 2 mil milhões de euros a conhecidos capitalistas, para quê? Produzir? Não. Para que estes senhores pudessem especular na bolsa e agora se vêem em dificuldades para recuperar esses valores. Quem paga a crise são os trabalhadores Sobre os proletários descarregam toda a fúria e custos desta crise. Como é da sua natureza a burguesia e o seu estado não avançam na renacionalização das empresas privatizadas, que geraram dezenas de milhares de milhões de euros de lucros nesta década, deixando a riqueza não ao serviço de todos, mas sim alienada aos caprichos de um punhado de indivíduos e para os trabalhadores desemprego e miséria. A política de queima de capitais teve uma expressão enorme, quem visitava Portugal sempre ficava surpreendido pelas notícias diárias nos jornais e televisões de encerramentos de empresas. O resultado é assustador, existiam, no final de 2009, 563 mil desempregados, ou seja, 10,1% dos trabalhadores, mas estes são os números oficiais do Instituto Nacional de Estatística, que não contabiliza aqueles que por terem passado um período largo no desemprego já não estão inscritos, aqueles que tiveram pelos menos uma hora de trabalho numa semana e os que são sujeitos a formação profissional obrigatória paga, e muitos economistas e sociólogos reconhecem que o número deverá rondar os 700 mil, números nunca vistos em Portugal. A expressão clara da crise endêmica nacional, nestes últimos 10 anos, é a escalada gradual e constante do desemprego, retirando uma descida de 0,4 em 2008 em relação ao ano anterior, todos os anos foram de contínua subida, quando em 2001 havia uma taxa de 4% terminaremos, segundo as previsões oficiais, o ano de 2010 à volta dos 11%. Ao desemprego deverão juntar-se outros ataques, nomeadamente, o aumento inolvidável da precariedade, há um regresso claro ao início do século passado de perda total de garantias e estabilidade no trabalho, aqueles na esquerda que reclamam “novas formas de organização política” em face de estes dados querem classificar a estes trabalhadores de “precários”, de forma a justificar a sua política oportunista de fervor parlamentar para não se sujeitarem à dificilíssima e morosa luta sindical, pois então comecem a esquecer a palavra trabalhadores, os “estáveis”, porque a tendência é não existirem mais, tal e qual há mais de cem anos atrás. Em Portugal, uns quartos dos empregados têm contratos a prazo e cerca de 90% destes contratos não evolui para situação permanente. Existem registrados cerca de 1 milhão de “autônomos”, isto é, profissionais liberais, empresários em nome individual, autônomos, mas estes são muito poucos e escondem uma realidade bem dura da contratação por prestação de serviços, na sua larga maioria em horários regulares e trabalhos necessários que recebem o seu salário através dos famosos “recibos verdes”, falsos e nem verdes são, o que juntando aos contratados acima referidos eleva para um terço os trabalhadores em situação laboral precária. Na juventude o clima piora, a precariedade atinge mais de 70% dos jovens trabalhadores entre os 16 e os 30 anos, e o desemprego sobe acima dos 17%, entre os licenciados a taxa sobe atualmente quase aos 40%. Como se não bastasse, as empresas de trabalho temporário (ETT), que com o seu negócio de simplesmente sonegar os rendimentos dos trabalhadores, e que crescem 20% ao ano, contemplam mais de 400 mil trabalhadores. A esta receita, os governos de turno, de PS, PSD e CDS/PP, juntaram também nos últimos dez anos cortes imensos nos gastos em serviços públicos. Destruíram-se milhares de escolas, as propinas nas universidades chegaram aos 1000 euros, fecharam-se dezenas de centros de saúde, hospitais e maternidades, e na mesma medida estão anunciados dez grandes hospitais privados nas regiões onde mais se sentiram estas políticas. Acabou-se com vários sistemas setoriais de saúde e de segurança social que tinham direitos superiores ao sistema regular da Caixa Geral de Aposentadorias e Segurança Social, introduziu-se um sistema de avaliação na Administração Pública que não fez do que impedir as progressões na carreira, retirando a vinculação definitiva de todos os funcionários públicos ao Estado, excetuando lugares de alta hierarquia no exército e polícia, facilitando a futura dispensa, encheram-se de taxas estradas, hospitais, centros de saúde, escolas e universidades. Suprimiu-se inúmeros direitos e garantias com a reforma do Código do Trabalho, aumentando a jornada de trabalho, eliminando dias de férias, flexibilizando a demissão, etc. Congelaram as progressões nas carreiras da função pública durante 4 anos e aumentaram o tempo necessário de contribuições para se conseguir a reforma aos 65 anos e reduziram drasticamente o valor das pensões a partir de 2015. Acrescentar as subidas de impostos, especialmente indiretos, como o Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA), que passou de 15% para 20% em 4 anos, chegando aos 21%. Tudo somado houve um brutal roubo de mais valia aos trabalhadores via Estado e em nome do déficit abaixo dos 3% a burguesia portuguesa fez o seu trabalho um pouco mais rápido que os restantes comparsas da UE e talvez por isso não esteja, ainda, no nível de alarme dos seus congêneres gregos, mas a realidade é mais forte e anunciam-se já congelamento de salários para o ano 2010. A unidade e combativade, sem pactos, é a saída A toda esta a esta situação não será estranha a existência de cinco governos, dos quais quatro sem maioria absoluta no parlamento, nos últimos dez anos. Os trabalhadores saíram várias vezes à rua contra todo este ataque e desbaratamento da produção e riqueza nacionais. No início de 2008, derrubaram o ministro da Saúde com fortes protestos populares contra o encerramento de centros de saúde, maternidades e hospitais. Mas quem, desde essa altura, esteve na vanguarda da luta contra as reformas do Governo do Partido Socialista (PS) foram os professores do ensino primário, básico e secundário. O combativo movimento dos professores mobilizou-se em grandes manifestações em Lisboa, uma em Março e outra em Novembro de 2008, ambas com mais de 100.000 professores, uma outra, convocada por movimentos alternativos aos sindicatos, apenas uma semana depois desta última, com 12.000. Realizaram duas greves com mais de 90% de adesão em Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009 e uma manifestação mais em plena campanha eleitoral para as eleições europeias com 50 mil, em finais de Maio de 2009. A burocracia sindical, dirigida pelo Partido Comunista (PCP), tentou desde o início que todo o descontentamento e fúria fossem resolvidas nas três eleições consecutivas que se deram em 2009, europeias, legislativas e locais. E, na sua tradicional linha, fizeram tudo para impedir que se somassem em unidade as lutas de toda a administração pública e dos enfermeiros, numa batalha constante contra os movimentos independentes dos sindicatos que surgiram e pressionaram a burocracia a ir até onde não queria. O Bloco de Esquerda (BE) assumiu a linha burocrática dos sindicatos, pondo um pé nos movimentos independentes apenas para não sair tão chamuscado como o PCP, e também apostando tudo na capitalização política nos atos eleitorais e através dos votos. Estes movimentos independentes fruto da sua inexperiência acabaram cooptados para a palavra de ordem “Não voto PS”, numa clara saída e capitulação oportunista de quem balançava sempre que era necessário enfrentar a burocracia. Assim, ao final da eleição legislativa de 2009, o governo do PS perde a maioria absoluta que tinha no parlamento e todo o movimento adormece à sombra desta suposta vitória, tendo os sindicatos aproveitando para selar um acordo com a nova equipa ministerial, um acordo que não resolve, nem de perto, a maioria das questões centrais que levaram os professores à luta. As águas turbulentas dos últimos quatro anos foram acalmadas pelas eleições, mas a situação altera-se tão rapidamente e a burguesia não consegue dar tréguas, fruto da situação econômica acima descrita, e anuncia novo congelamento dos salários para este ano de 2010. No início deste, dá-se um recrudescimento da luta com uma greve de três dias dos enfermeiros junto com a maior manifestação de sempre deste sector. Os funcionários da administração pública saíram também à rua no início de Fevereiro e têm greve convocada para o dia 4 de Março, a que se irão somar os professores, contra o tal congelamento e o fim das quotas na avaliação de desempenho. A instabilidade continua a ser a pedra de toque tanto política como sindical, o Governo é neste momento um executivo frágil, que junto com a oposição de direita estão acossados por contínuos casos de corrupção. O PCP e o BE estão paralisados na expectativa, os primeiros abrindo cautelosamente as portas de descontentamento dos sindicatos para que a situação não lhes fuja da mão, os segundos amarrados e manietados por um apoio que concederam ao putativo candidato governamental, Manuel Alegre, para as eleições presidenciais de Janeiro de 2011. A renacionalização da banca e empresas de sectores energéticas, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, é a palavra de ordem e a saída imediata para melhorar as condições de vida dos trabalhadores que qualquer organização defensora destes deve adotar. A situação de debilidade do Governo, que busca a todo o momento pactos com a oposição, a par de um descontentamento para com as direções sindicais abre a porta a movimentos saídos por fora do controlo da burocracia e a explosão de grandes confrontos sociais, a unidade e combatividade dos trabalhadores contra todo o plano de choque que nos aplicarão desde a UE é peça fundamental neste combate.