sábado, 20 de novembro de 2010

100 anos da Revolta da Chibata

Centenário da Revolta da Chibata
Há exatos 100 anos um marinheiro negro colocava de joelhos a República Velha
O levante ficou conhecido como a Revolta da Chibata, liderada por João Cândido

17 de novembro de 2010
Em 15 de novembro de 1910 tomara posse no governo federal, cuja sede era então a cidade do Rio de Janeiro, que contava com pouco mais de um milhão de habitantes, o marechal Hermes da Fonseca, substituindo Nilo Peçanha. A vitória de Hermes da Fonseca representou o predomínio dos setores mais reacionários sobre o Estado contra o candidato democrático da classe média e de setores da burguesia.
O Brasil era considerado a terceira potência naval do mundo, sendo sua esquadra formada por dois encouraçados, o Minas Gerais - um dos mais modernos do mundo - e o São Paulo, dois cruzadores e outras embarcações num total de 24. O poderio militar naval brasileiro e sua superioridade em relação aos demais países da região chegou a obrigar que o país se desfizesse de um encouraçado, o Rio de Janeiro, por pressões diplomáticas da Argentina e de outros países.
No Brasil da República Velha, mais ainda do que hoje, a Marinha constituía-se na força mais reacionária e mais aristocrática do que o Exército, dominado pela tradicional camarilha reacionária, mas ainda impregnado de toda a luta democrática que ia desde a Abolição até a proclamação da República e os primeiros anos dos governos republicanos.
Seguindo um ilegal costume da oficialidade da Marinha e do Batalhão Naval, no dia 22 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes, foi condenado a 250 chibatadas.
A chibata havia sido abolida na Armada pelo terceiro decreto do primeiro governo republicano do País, em 16 de novembro de 1890, mas continuava em vigor na prática, a critério dos oficiais. Centenas de marujos, de expressiva maioria negra, continuavam tendo seus corpos retalhados por oficiais brancos.
Conforme o relato do 2º sargento Eurico Fogo, uma das vítimas da chibata, publicado no livro de Edmar Morel, A revolta da Chibata, "o bandido (carrasco que aplicava a pena, NR) apanhava uma corda mediana, de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço, das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho com o fim de aparecer apenas as pontas das agulhas. A guarnição formava e vinha o marinheiro faltoso algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia a proclamação. Tiravam as algemas do infeliz e o suspendiam nu da cintura para cima no pé de carneiro, ferro que se prendia ao balaustrada do navio. E, então, Alipío, mestre do trágico cerimonial, começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia carniceiramente o seu mister degradante. Os tambores batiam com furor, sufocavam os gritos (...) A marinhada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: - Isto vai acabar!".
O marinheiro Marcelino recebeu as 250 chibatas assistidas por toda a tripulação do navio. Mesmo depois de desmaiado o flagelo continuou.
Naquela mesma noite, às 22 horas, a bordo do Minas Gerais, primeiro e, depois do São Paulo e do cruzador Bahia, centenas de marinheiros se amotinaram, destituíram seus comandantes e toda a oficialidade. Tudo conforme haviam arquitetado os líderes da revolta, à frente dos quais se encontrava João Cândido, marinheiro negro do Minas Gerais.
A revolta
Em um relato objetivo, João Cândido resume assim os acontecimentos: "Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte temporal sobre a parada militar e o desfile naval. A marujada ficou cansada e muitos rapazes tiveram permissão para ir a terra. Ficou combinado então que a revolta seria entre 25 e 26. Mas o castigo de 250 chibatas do Marcelino Rodrigues precipitou tudo. O Comitê Geral resolveu, por unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. O sinal seria a chamada da corneta das 22 horas. O Minas Gerais, por ser muito grande tinha todos os toques de comando repetidos na proa e popa. Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate. Cada um assumiu seu posto e os oficiais de há muito já estavam presos em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante.
"Às 22h50m, quando cessou a luta no convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro a princípio ficou mudo. Ordenei que todos os holofotes iluminassem o arsenal da marinha, as praias e as fortalezas. Expedi um rádio para o Catete (sede do governo, NR), informando que a esquadra estava levantada para acabar com os castigos corporais. Os mortos na luta foram guardados numa improvisada câmara mortuária e, no outro dia, de manhã cedo, enviei os cadáveres para a terra. O resto foi rotina de um navio em guerra".
Ultimato
A mensagem enviada pelo rádio do Minas Gerais foi um ultimato dos marinheiros ao regime político, de modo seco e direto: "Não queremos a volta da chibata. Por isso, pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha, queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e navios que não se revoltarem". Dezenas de oficiais foram mortos outros detidos ou ainda desembarcados. Muitos marinheiros também tombaram. Uma após outra, quase todas as embarcações, as quais foram sendo assumidas pelos marujos e João Cândido, juntamente com outros líderes, assumiu o comando de toda a Armada. Pela primeira vez na história da humanidade um marinheiro foi comandante de toda uma esquadra. Na manhã do dia seguinte chegaram ao cais da Baía de Guanabara, dentre outros os corpos do capitão-de-mar e guerra Batista Neves, comandante do Minas Gerais e do capitão-tenente, José Cláudio da Silva. A população, informada pelos jornais da revolta, tinha por ela grande simpatia e dirigiu-se às praias e ao alto dos morros para acompanhar os acontecimentos. No mastro dos navios, os revoltosos hastearam bandeiras vermelhas.
Governo refém
Alguns integrantes do governo, como o prefeito, Gal. Bento Ribeiro, e o chefe da polícia, Belisário Távora, chegaram a defender pela imprensa a resistência, o não estabelecimento de nenhuma negociação com os revoltosos e, casos estes não se rendessem, "mandar torpedear os navios". As ameaças da direita do regime, se bem expressassem a vontade dos senhores do país, não eram acompanhadas da necessária coragem para enfrentar, não marinheiros desarmados e subjugados pelo terror da disciplina militar, mas em posse dos navios de guerra e dispostos a lutar.
A revolta, no entanto, dispunha de informantes no interior das corporações de terra, em particular dentre os rádio-telegrafistas, responsáveis por enviar a mensagem do comando às embarcações e unidades. João Cândido foi informado dos planos da marinha e tomou providências como o afastamento dos navios da costa durante a noite, para que não pudessem ser alvos dos canhões das fortalezas.
A vitória dos marinheiros
Os revoltosos dispõem de enorme poder bélico (de fato, capaz de arrasar com a cidade antes que sejam dominados) e o governo não dispõe de apoio político popular para ações mais ousadas devido à crise do regime.
Nas negociações entre os revoltosos e os representantes do governo e parlamentares, os últimos prometem apenas elaborar a lei que já existia proibindo a chibata, pôr em discussão as demais melhorias reivindicadas pelos marinheiros e assegurar-lhes a anistia contra a “insubordinação” e mortes de oficiais ocorridas.
Após intensa discussão no Congresso Nacional, o projeto é submetido a votação, usando-se inclusive da fraude de anunciar que os marinheiros haviam suspendido a revolta declarando-se arrependidos e suplicando a anistia. Tudo isso, como explica Edmar Morel, "foi forjado para facilitar a tarefa do Senado Federal que precisava de uma saída honrosa". Três horas após ser aprovado no Senado, o projeto foi aprovado por larga maioria na Câmara dos Deputados, demonstrando uma vez mais como uma verdadeira pressão sobre o parlamento (não os lobbies que a burocracia sindical e a esquerda petista apreciam tanto) é capaz de fazer para superar a proverbial lerdeza e má-vontade dos deputados e senadores em atender as reivindicações populares.
O Comitê Geral, dirigido por João Cândido, diante da aprovação da anistia e do fim da chibata, resolve em 25 de novembro terminar a revolta e depor as armas dos mais de três mil marujos sob seu comando. A oligarquia da República Velha e a burguesia haviam capitulado diante da exigência armada dos marinheiros.
Alguns setores dos revoltosos se opõem ao acordo, considerando-o insuficiente, como aconteceu com a tripulação do Deodoro. Seu comandante rebelde, o marinheiro José Alves de Souza redige um protesto criticando João Cândido, com o qual tenta chamar as demais embarcações a permanecerem em revolta. José Alves declara: "Não devemos ter pressa da anistia. Esperemos por alguns dias. Não dizem que nosso soldo será discutido no Congresso? Pois aguardemos a sua discussão. Nós temos forças. O povo está conosco. Ele há de nos ajudar a forçar o governo a dar tudo o que desejamos".
A posição de recuo de João Cândido triunfa, no entanto, e no dia 26 as embarcações começam a atracar no cais e o comando das embarcações é novamente entregue ao Ministério da Marinha.
Um exemplo de luta
Superando, por força das condições miseráveis que lhes eram impostas, o profundo atraso cultural em que viviam os milhares de marinheiros liderados pelo negro João Cândido, então com trinta anos, foram os protagonistas de um dos mais extraordinários episódios, dentre muitos outros dos quais a história do Brasil está repleta, que exemplificam a coragem, a determinação e a capacidade das massas exploradas do país, em particular do seu proletariado, de se insurgirem contra a exploração, a opressão e a tirania dos exploradores e seus governos.
Os limites naturais, estabelecidos pela inexperiência política de João Cândido, bem como de toda a nascente classe operária brasileira não lhe tira em nada o mérito desta luta heróica. A falta de experiência levou-os a conferir crédito às promessas dos setores da oligarquia no governo, bem como à farsa da anistia realizado no Congresso, que não impediu que as forças militares pusessem em marcha o processo de perseguição e vingança que consumiu a vida de centenas de marinheiros de forma cruel e sanguinária.

João Cândido e o centenário da Revolta da Chibata são um exemplo para a classe operária e todos os explorados, em geral, e para os trabalhadores e a juventude negra, em particular, de quais são os métodos e o caminho para se conseguir a emancipação diante da opressão capitalista: a organização independente dos explorados, a luta com seus próprios métodos e instrumentos de luta por suas reivindicações e mesmo a sua derrota após a vitória ilustram a necessidade de liquidar com o governo e o regime político da burguesia para ver essas reivindicações fundamentais atendidas.

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