quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Neoliberalismo e violência no Chile

Neoliberalismo e violência: a luta do povo chileno por educação gratuita.
Por Joana Salém Vasconcelos.
Colaboradora da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL.
De Santiago do Chile.
 
Piñera é incapaz de resolver as demandas democráticas mais elementares, como a gratuidade da educação pública. Cresce a falta de confiança no governo, que deixou de ser um interlocutor válido após tanta intransigência.
 
Hoje, 9 de agosto, uma marcha de mais de 100 mil pessoas tomou a capital do Chile em defesa da gratuidade da educação. Dela fizeram parte estudantes secundários, universitários, professores, funcionários da educação, funcionários do transporte, trabalhadores de outros setores públicos.  Muitas pessoas se agregaram no caminho, e foi notável o amplo apoio dos moradores, que saiam nas suas janelas com panelas, apitos, aplausos, em defesa da luta estudantil e popular. A defesa da gratuidade da educação pública e pelo fim do lucro na educação está nas ruas desde maio de 2011, mobilizando tremendamente a sociedade chilena.
A marcha foi pacífica até seu término e percorreu cerca de 40 quadras com suas faixas coloridas, danças, bom humor, irreverência e palavras de ordem políticas. Após o fim da marcha, na Plaza Almagro, alguns estudantes fizeram barricadas e incêndios nos arredores, para demonstrar sua insatisfação com a intransigência do presidente Piñera. Como a situação está permanentemente tensa, sobretudo após a brutal repressão dos carabineros (Polícia Militar Nacional chilena) do dia 4 de agosto, rapidamente a radicalização estudantil das barricadas se transformou numa guerra aberta entre estudantes e polícia. Além da revolta dos estudantes, obviamente havia agentes provocadores infiltrados para estimular o choque, e oportunistas que se aproveitaram do caos para realizar furtos. A polícia chilena tem o hábito de usar tanques de guerra na cidade, para reprimir movimentos sociais. Lançam uma água tóxica em jatos violentos, que com sua força chegam a 100 metros de distância. Os estudantes atiravam pedras contra os tanques de guerra, e os carabineros não economizaram as bombas de gás lacrimogêneo. Mais barricadas foram feitas com incêndios, e a polícia seguiu avançando sobre os estudantes da Plaza Almagro. Só hoje, quase 900 estudantes foram presos em Santiago. Uma cena de guerra se instalou na cidade no meio da tarde, com incêndios, saques, gás lacrimogênio, repressão policial, quebra de vidros, destruição de carros.
A imprensa burguesa, como de costume, mostrava as imagens de estudantes encapuzados (que se protegiam das bombas de gás), usava a palavra vandalismo e nada falava sobre as justas demandas do movimento. Houve vandalismo, de fato. Mas não se trata de julgar o certo e o errado desse vandalismo. Melhor explicar a violência através de seu contexto, pois independente de estar certa ou errada, ela definitivamente não é gratuita. A violência das ruas expressa o nível explosivo de indignação juvenil e a incapacidade do governo de atender as demandas democráticas mais elementares, como gratuidade da educação pública. Pior, o governo demonstrou que não vai fazer concessões, e só apresentou promessas duvidosas, falsidades e pequenos prêmios. Os estudantes já não confiam na possibilidade de que esse governo resolva o problema. A radicalização expressa absoluta falta de confiança no governo, que deixou de ser um interlocutor válido, uma vez que é incapaz de escutar. A popularidade de Piñera caiu para 26%, e a desaprovação subiu para 60%, em níveis históricos de debilidade.
 
O sistema educacional chileno e o endividamento da sociedade
A maioria da população chilena paga caro pela universidade, mesmo que ela seja pública. Muitas escolas públicas estão sendo entregues para administradores privados, que respondem à lógica do lucro e cobram anualidades. A municipalização das escolas públicas gerou um sistema perfeito de reprodução das desigualdades sociais através da educação. Pois cada bairro é uma unidade orçamentária responsável por suas escolas, fazendo com que a periferia seja abandonada com falta de recursos e que os bairros ricos sejam crescentemente privilegiados.  Sendo assim, o contexto é de privatização total da educação e de revolta contra os efeitos insuportáveis gerados pelo neoliberalismo chileno.
A privatização voraz da educação chilena vem desde 1981, antecipando a maioria dos países latino-americanos, que viveram o boom do mercado educacional nos anos 90. O Chile foi, mais uma vez, o laboratório. E que fique claro: não só a ditadura Pinochet é responsável pela privatização da educação. Os sucessivos governos da Concertación (composta por Partido Socialista, Democracia Cristã e Partido Radical) são extremamente culpados pela atual situação. Certamente, hoje a Concertación está fazendo seus cálculos eleitorais com otimismo, querendo recolocar Bachelet na parada. Mas não passa de uma falsa alternativa, que reproduz o mesmo modelo com mais habilidade para dialogar com os movimentos sociais. Já teve seu tempo para provar ser diferente, e provou ser igual. Demonstrou sua alta competência para administrar o neoliberalismo, e só. O modelo de “crescimento econômico” de Pinochet está ainda vivo, e atravessou os 20 anos de governo da Concertación quase intacto. Como dizem os estudantes: “Venham ver, venham ver! Esse não é um governo, são puras leis de Pinochet”. Sem falar da Constituição chilena, que é a mesma da ditadura.
O endividamento da sociedade chilena já bate seus próprios recordes, devido a esse modelo brutalmente privatista. Gastos com saúde, educação, transporte, alimentos, moradia, bens básicos e impagáveis, que amarram a sociedade nas teias das taxas de juros dos bancos. É uma sociedade de empréstimos e de linhas de crédito, que lembra bastante os EUA. Recentemente uma rede de lojas para consumidores de baixíssima renda, chamada La Polar, entrou em colapso porque suas dezenas de milhares de clientes endividados não lhes podiam pagar.
Por isso, esse movimento estudantil conquistou a simpatia da sociedade, que não agüenta mais pagar juros. A luta estudantil se converteu em luta da maioria. Há ampla hegemonia do movimento nas classes baixas e médias, sendo rejeitado somente entre os mais ricos.
 
Promessas e disfarces: o plano de Piñera
O governo Piñera é herdeiro direto das ideologias de Pinochet. É tão comprometido com os empresários da educação, que foi incapaz de dar um pequeno passo em direção às demandas estudantis. Até agora, Piñera não fez mais que elaborar um “Projeto” cheio de promessas duvidosas e falcatruas escondidas. O “Projeto” se chama GANE (grande acordo nacional da educação). Dentro dele, além da reafirmação do sistema neoliberal mercantil de educação, há somente três elementos relevantes: primeiro, a ampliação de 10 mil bolsas de estudo para os estudantes mais pobres, em segundo, a criação de uma superintendência que fiscalize o lucro na educação, e terceiro, a criação de um fundo de 4 bilhões de dólares para educação. Com esse projeto o governo não faz mais que legitimar a educação paga, rejeitar a gratuidade da educação pública e legalizar o lucro, ou seja, justamente o oposto do que o movimento quer. A proposta da ampliação de bolsas, além de ser insuficiente em termos quantitativos, desconsidera a gratuidade da educação pública e reproduz o sistema privatizado já vigente. A proposta da superintendência é uma piada de mau gosto. É criar mais um órgão burocrático do governo, para que Piñera nomeie seus aliados (já bem conhecidos pelos chilenos) para fiscalizar os próprios lucros! Já está mais que provado que o governo Piñera fará de tudo para favorecer o empresariado da educação, e não por acaso escolheu Joaquín Lavín para ser ministro. Essa superintendência, além de legalizar o lucro, dá poder aos empresários da educação para fiscalizarem a si mesmos, sendo, portanto, uma aposta do governo na ingenuidade total do movimento. E por fim, esse fundo para educação está sendo encarado como uma promessa duvidosa pelos estudantes, que querem ver para crer.  
O movimento estudantil, por tudo isso, está mais que indignado. Trocar ministros de cadeira não resolve o problema. O novo ministro Bulnes parece incompetente para negociar, sem personalidade, sem propostas. Não é possível que após tantas demonstrações de força, tantas marchas, tantas ocupações, o governo siga pensando que os estudantes vão se contentar com falsos projetos.  
Daí que a revolta estudantil de hoje tem suas raízes no contexto de injustiça social e na intransigência do governo. O governo não está levando a sério seus interlocutores e Piñera não faz mais que discursos demagógicos e falsos projetos. O movimento já demonstrou sua força real, já avisou que veio para conquistar a gratuidade da educação como condição básica da democracia. E que vem fortalecer a luta pela democracia real em nosso continente, incluindo a tão necessária Assembléia Constituinte no Chile. A educação de Pinochet vai cair em breve. Lutemos para que caia também a Constituição de Pinochet.
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Joana Salém Vasconcelos
Historiadora - USP
Mestranda em Desenvolvimento Econômico - UNICAMP
 

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